Emídio Rangel - "O maior compromisso do jornalismo é com a verdade"


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Emídio Rangel foi o responsável pela revolução na comunicação social em Portugal. Primeiro mudou a forma de se fazer rádio com a TSF e depois deu um ar da sua graça na televisão fazendo do primeiro canal privado um canal com ventos de mudança. Aos sessenta e seis anos podemos concluir que fez muito pelo jornalismo mas continua com o amargo de boca por não ter conseguido erguer o sindicato dos jornalistas que, segundo ele, enalteceria os bons profissionais e penalizaria os maus. É com palavras ponderadas que me recebe no Hotel Ritz, no centro de Lisboa, para falar sobre o ritmo pouco ponderado do jornalismo dos dias de hoje.


Quando fundou a TSF revolucionou a forma de fazer jornalismo em Portugal. Acelerou o ritmo da informação com os noticiários de meia em meia hora. Hoje em dia não acha que o formato “30 em 30 minutos” já não chega?

Isso é uma eterna discussão. É uma questão que se vai discutir sempre. Na altura, no nosso país só existiam duas estações de rádio: uma do estado, outra da igreja e que publicavam dois serviços noticiosos por dia portanto não havia uma preocupação de oferecer uma informação, eu não diria aprofundada, mas de todas as coisas principais que aconteciam no mundo. Era necessário criar um meio de comunicação social que viesse suprir essa lacuna e que aparecesse a discutir um assunto, nacional ou internacional, no próprio dia em que tinha sido desencadeado. Não uma discussão no dia seguinte, como acontecia na altura.

Mas atualmente parece que já não é no dia seguinte, nem no próprio dia, é no minuto a seguir...



Estão passados mais de vinte anos, desde o momento que eu criei o modelo da TSF. A TSF cumpriu claramente a sua função e acho que continua a cumprir, embora me pareça que careça de renovação no seu formato, no seu tipo de abordagem informativa, mas a verdade é que continua a ser um meio de comunicação social decisivo e importante e isto quer dizer que quando há um acontecimento nacional, ou um acontecimento internacional que tem importância, as pessoas ligam automaticamente à TSF. A TSF foi muito copiada, apareceram outros meios de comunicação social que adotaram o modelo que a TSF tinha adotado, não só o modelo horário, copiaram totalmente o nosso modelo. Sinto, em muitas ocasiões que hoje em dia há uma overdose informativa...


Era justamente isso que eu lhe ia perguntar, parece que atualmente é mais importante dar primeiro do que dar melhor...



E não é verdade! O que importa é dar com toda a verdade, com todos os fundamentos, observando todas as regras, cumprindo todos os ditames do código ético e deontológico e dando com certeza uma informação exata, uma informação limpa, uma informação em que as pessoas que têm que falar sobre aquele assunto estão todas prontas para falar e falam. Hoje as notícias nem se confirmam. Começou a circular uma coisa qualquer e aquilo aparece nas rádios, aparece nas televisões e até aparece nos jornais e depois quando se vai verificar aquilo está muito longe de ser a verdade informativa, não foram tomados os cuidados necessários para garantir que a informação é correta. Sou um crítico do exercício jornalístico que se pratica hoje, quer nos jornais, quer na rádio, quer na televisão, acho que se passou para um tempo em que o rigor desapareceu e em que as notícias são dadas sem nenhuma preocupação de saber, com exatidão, se são verdadeiras. De certeza absoluta que todos os dias se dão notícias que não são verdadeiras.



E será que essas notícias que não são verdadeiras se dão por influência do público? Porque parece que atualmente que tem um smartphone, ou um tablet pode ser jornalista. Como é que vê esta entrada do público no próprio processo de construção de uma notícia?


Aos públicos não vou atribuir nenhuma responsabilidade, acho até um bom exercício que o público use a internet para dar informações. Informações que não são notícia. A notícia pressupõe um conjunto de informações que foram testadas, que passaram por um crivo de verificação da verdade e que tiveram em conta todos os interesses em jogo nessa notícia. Uma coisa são os públicos. Aos públicos é que eu admito que escrevam isto ou que escrevam aquilo, não são profissionais, não são pagos para isso, não estudaram para isso e portanto dão as suas informações como querem.


E o resto do público, reconhece essas diferenças?

Acho que sim. A maioria do grande público reconhece quando está a observar uma página, nem falo do Facebook, de qualquer lugar da internet e coloca-se logo de pé atrás. Aquilo pode ser verdade mas também pode não ser verdade e depois acaba por não prescindir de ir a uma estrutura profissional, a um meio de informação verificar se aquilo está certo.


Muitas vezes os próprios jornalistas são enganados por essas fontes de informação. Lembro-me, por exemplo, do caso do Espanhol El País que divulgou uma foto do presidente Hugo Chavés entubado...

São fenómenos de contágio, aí não foi o público que se deixou contagiar pelo exercício jornalístico, foram os jornalistas que se deixaram contagiar por aquilo que é o exercício de liberdade de expressão que a internet permite. Acredito que a internet continua a ser uma fonte de informação a ser observada e às vezes contém detalhes que são importantes para a produção de uma boa notícia. Não chega para se dizer que aquela informação é verdadeira. Há fenómenos de contágio que são muitas vezes negativos. A internet teve e tem um lugar preponderante no interesse dos espectadores em geral, dos ouvintes em geral, no fundo no interesse dos consumidores de informação e é natural que isso interesse os jornalistas mas partir dali como sendo a informação certa ou como sendo uma informação que é dada com rigor vamos de um canto a outro do mundo...


Quando a rádio surgiu – a rádio em geral – disse-se que seria o fim dos jornais, quando a televisão surgiu falou-se no fim da rádio. O certo é que todos foram co-habitando, ainda assim não acha que a internet está a fazer mossa?

São coisas absolutamente distintas. Eu não posso, isoladamente, dizer que a internet é um órgão de comunicação. É uma estrutura, que está implementada a nível mundial, de difusão de informações. Essas informações, umas são verdadeiras, outras são falsas, outras são propaganda, outras são contrapropaganda. E a isto não posso chamar meio de comunicação social porque um meio de comunicação social, tem regras de atuação, tem princípios pelos quais determina a sua vida todos os dias e não posso comparar uma coisa e outra. Acho que uns são órgãos de informação e outros são redes que, no fundo, podem distribuir informações mas não se sabe qual é o mérito dessas informações.


Há órgãos de comunicação que tentam implementar-se na internet mas não têm conseguido...

Conheço esses meios. É extraordinariamente difícil conseguir implantar na internet um meio que tenha unidade, que tenha autonomia própria, que tenha capacidade de surgir junto dos espectadores a qualquer hora e a qualquer momento, que tenha essa capacidade de chegar ao contacto com os espectadores, os ouvintes, os leitores. Há projetos que têm sido feitos pelo The New York Times e por muitos outros órgãos poderosos a nível mundial que não são nem mais nem menos do que formas coadjuvantes do próprio meio de comunicação social que eles são: o meio de comunicação forte é o The New York Times, é o The Guardian, esses sim são "o jornal". O que não significa que não seja razoável que esse meio de difusão de informação seja feito através da internet e, eventualmente, a internet pode ajudar a divulgar o próprio meio, apenas isso. Isoladamente, sem esse apoio, sem esse conjunto de ações que são características dos próprios meios de comunicação social é difícil a internet sobreviver. No inicio, quando a internet apareceu dizia-se: "agora os jornais já não são precisos, a rádio muito menos, basta ir à internet e estão lá as notícias todas"...


...Mas os órgãos de comunicação social embarcam nessa ideia...

É verdade e percebo que numa estratégia de marketing, numa estratégia de divulgação e numa tentativa de chegar a mais pessoas a internet acabe por ser uma rede que ajuda a divulgar, tal como divulga outras coisas, o nome de um jornal.


Comparemos o Correio da Manhã com o Público. No primeiro a grande maioria das notícias termina com "continue a ler na edição impressa" mas no caso do segundo a notícia é escrita com todos os conteúdos e informações que vão para a edição impressa.

Volto a integrar isso na lógica da propaganda, na tentativa de se considerar um meio moderno. "O jornal sai uma vez por dia mas não se preocupe nós continuamos vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas atentos à saída de informação e se não lhe damos numa edição em suporte papel fique descansado porque damos-lhe imediatamente através da internet". É um truque que usam esses meios de comunicação social para se darem a conhecer melhor para através disso criar algum hábito de leitura, criar alguma proximidade entre esse meio de comunicação social e os públicos em geral. Até agora não vi nenhuma experiência bem sucedida.


O certo é que todas as redações estão a ser encurtadas mas é pedido mais trabalho aos jornalistas. Um jornalista tem que fazer uma notícia para a rádio, para o site, tirar fotos, fazer videos. Será por isso que o jornalismo está em decadência?

Confesso que considero indesejável a situação em que o jornalista faz tudo isso, só lhe falta dar uma vassoura para varrer o chão do estúdio. Eu não acho isso possível porque cada meio tem a sua linguagem própria, cada meio tem a sua estratégia enunciativa de discurso própria. Cada meio tem características muito marcadamente individualizadas. São os donos dos meios de comunicação social que acham que isto é tudo a mesma coisa, que fazer uma notícia para a rádio é a mesma coisa que fazer uma notícia para um jornal e para a televisão e com mais um jeitinho faz uma notícia para a web. É como se fosse tudo a mesma coisa e não há nada mais enganoso. É evidente que os erros se multiplicam, as notícias acabam por não ser redigidas de forma a que os públicos as recebam nas melhores condições. Uma notícia tem um peso tão decisivo na vida das pessoas que eu já vi pessoas a serem completamente destruídas porque uma notícia, mal feita, acabou, sem dó nem piedade, por colocar na folha de rosto de um jornal a fotografia dessa pessoa e considerou essa pessoa desonesta e a pessoa está completamente inocente e é absolutamente incapaz de se defender. O jornalismo tem que ser um exercício muito responsável, tem que ser feito com um grande sentido de rigor, com uma grande preocupação de não ferir aqueles que não têm nada que ver com aquele assunto. Um jornalista não pode produzir um ato fácil de informação, tem que produzir a informação correta e tem que verificar, através dos meios ao seu dispor, se há pessoas que podem testemunhar sobre aquele acontecimento, que podem afirmar ou infirmar aquilo que é dito. Desgraçada da pessoa que é colocada numa situação como esta porque fica irremediavelmente perdida. O maior de todos os compromissos do jornalista é com a verdade.


Quando esteve no lançamento da SIC e da TSF pensou que eles podiam ter chegado onde chegaram ou gostava que eles tivessem seguido outro rumo?

Eu gostaria que eles fossem aquilo que eram no início. A TSF, no início, quando dava uma notícia era muito raro, mas muito raro mesmo, dar uma notícia que não fosse rigorosamente verdadeira e que não fosse cuidadosamente elaborada e, portanto, não havia discussão a volta daquele assunto. Não quer dizer que todas as pessoas já tivessem sido ouvidas mas aquilo que se dizia era certo, era verdadeiro. E já disse que o maior compromisso do jornalismo é com a verdade, quando falha esse compromisso não resta mais nada, fica feito em pedaços quando não é capaz de dizer a verdade. A TSF teve uma boa escola porque esteve seis meses a formar os seus próprios jornalistas e quando fui para a SIC impus a mesma regra. As pessoas aprendiam quais eram as regras, quais eram as normas, qual era a forma de atuar e estava tudo determinado e isso repercutiu-se na antena. A grande arma da SIC para ultrapassar as outras estações foi produzir serviços noticiosos bem feitos, com rigor e com verdade.


...e bonitos...

[risos] Sim, e bonitos também, porque a estética não se pode afastar da comunicação em termos gerais.


Principalmente em televisão...

Mesmo que não fosse a televisão, cada um, com a sua linguagem própria, pode encontrar uma estética própria. Não são só os olhos que são importantes. Os olhos, os ouvidos, a sensibilidade isso é tudo fundamental.


Se estivesse agora na fundação de um órgão de comunicação seriam necessários seis meses de formação, uma vez que a maioria dos jornalistas são licenciados? Pergunto-lhe isto para saber que valor dá aos cursos superiores de formação de jornalistas.

Na altura todos os jornalistas que fizeram essa formação na TSF e na SIC eram todos licenciados. Foram todos selecionados um a um. Os candidatos sujeitaram-se a uma bateria de testes de cultura geral, de português e até psicológicos.


Acha que a profissão de jornalista está achegar ao fim?

Não acho que a profissão esteja a chegar ao fim, pelo contrário, acho que é uma profissão apaixonante, muito bonita, muito exigente mas permitiu-se o exercício jornalístico de qualquer maneira, sem atender às suas regras próprias. O jornalismo tem que ser feito de acordo com regras técnicas e para além disso eu costumo dizer que não é jornalista quem quer, é jornalista quem tem a capacidade de ter a seriedade que lhe permite ser rigoroso neste exercício. Quem não for sério não pode ser jornalista. Na altura que a SIC estava na sua fase iniciática fui convidado para fazer nascer, em Portugal, a Ordem dos Jornalistas. Tenho uma grande pena que a Ordem dos Jornalistas não tenha nascido porque estou convencido que não é com o sindicato que nós conseguimos resolver algumas coisas. É preciso uma ordem mas na altura o governo inventou todas as leis e criou imensas dificuldades para que a ordem abrisse. Uma Ordem dos Jornalistas permitiria que os bons jornalistas fossem jornalistas a vida inteira e que aqueles que não cumprem as normas fossem punidos e até deixassem de poder exercer essa profissão. O que eu sinto é que há bons jornalistas e bons jornais mas o número decresceu exponencialmente.

©Entrevista gravada em 19 de Junho de 2013